A Lei Paulo Gustavo e o "barco de mer."

A Lei Paulo Gustavo e o "barco de mer."

OPINIÃO - Rodrigo Saturnino Braga
10 jul 23

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Uma das primeiras lições que recebi na vida profissional, no meu primeiro ano na Embrafilme, foi a respeito do impacto de uma cadeia de decisões equivocadas nas operações de uma organização. Foi Antônio Sérgio Loureiro, então diretor administrativo da estatal, o executivo dedicado às reformas na estrutura da entidade, quem me contou a analogia entre o funcionamento de uma empresa e um barco cheio de mer. colocado na nascente de um rio.

Um barco foi atracado na margem de um rio, na sua nascente, com o objetivo de facilitar a vida da população ribeirinha. Pouco depois, colocaram mer., um material nocivo, no barco; em seguida, alguém soltou a embarcação que, então, foi levada pela corrente. Muitos viram o barco e se perguntaram os motivos de estar à deriva; quase todos podiam perceber que a situação era perigosa, pois a embarcação podia se acidentar e espalhar a matéria tóxica no meio ambiente. Alguns tinham capacidade para intervir, mas imaginaram que seres com poder eram os responsáveis pela ação. Então, se omitiram ou colocaram mais mer. no barco, para agradar ou não contrariar os supostos poderosos. O barco seguiu o curso do rio, com cada vez mais substância maléfica no seu interior, até o esperado acidente em uma curva mais acentuada. Afundou e espalhou mer. na margem e no leito do curso d’água.

Nas organizações, públicas ou privadas, situações análogas podem ocorrer. Uma política ou ação bem-intencionada é lançada, mas um erro distorce seus objetivos. O erro não é notado; se notado, não é corrigido; ou as tentativas de ajuste acabam provocando novos equívocos, até o inevitável desastre da administração.

A gestão da Lei Paulo Gustavo (LPG) parece estar experimentando uma conjuntura similar em uma das suas finalidades, ou seja, o apoio à exibição nacional. No seu artigo 6º, inciso II, determina que uma das aplicações de recursos será para:

“apoio a reformas, a restauros, a manutenção e a funcionamento de salas de cinema, incluída a adequação a protocolos sanitários relativos à pandemia da covid-19, sejam elas públicas ou privadas, bem como de cinemas de rua e de cinemas itinerantes” (o grifo é nosso).

Ao usar a conjunção aditiva e, o legislador deixou claro considerar que cinemas de rua são diferentes de cinemas itinerantes.

O Decreto 11.525, de 11 de maio último, que regulamenta a LPG, no parágrafo 6º do artigo 3º, alterou o sentido do texto da lei ao dar ao cinema de rua e ao cinema itinerante a mesma definição:

“considera-se cinema de rua ou cinema itinerante o serviço de exibição aberta ao público regular de obras audiovisuais para fruição coletiva em espaços abertos, em locais públicos e em equipamentos móveis, de modo gratuito, admitida a possibilidade de aplicação dos recursos em projetos já existentes ou novos, públicos ou privados” (o grifo é nosso).

Ao regulamentar o instrumento legal, o decreto colocou material tóxico no barco da LPG. Para a lei, cinema de rua e cinema itinerante são modalidades diferentes; para o decreto, cinema de rua ou cinema itinerante são a mesma coisa. 

O parágrafo 5º do mesmo artigo 3º define, para a aplicação da LPG, salas de cinema e especifica quais são elegíveis para serem beneficiadas. Aqui, fica determinado que somente as empresas com até 25 salas no país poderão participar das ações públicas decorrentes da lei. De qualquer forma, este parágrafo trata das salas de cinemas em geral, destacadas no artigo 6º, inciso II da LPG. 

Os modelos de editais sugeridos no portal do MinC adotam um outro caminho, tentando corrigir o equívoco do decreto mas aumentando a confusão. Como a Filme B noticiou semana passada, ignoram as empresas de exibição com até 25 salas no país, para concentrar as ações nos cinemas de rua e nos cinemas itinerantes, agora descritos como atividades diferentes, o que contraria o disposto no Decreto 11.525/2023. Mas são apenas sugestões, sem valor normativo.

Há uma indisfarçável imprecisão nas definições e, provavelmente, daí nasce a aparente contradição. O cinema de rua é transformado em cinema na rua. Mais uma vez, vale lembrar o exemplo do cine Odeon, um cinema de rua que, pelo modelo de edital sugerido, não seria contemplado, enquanto um espaço provisório montado na praça da Cinelândia, um cinema na rua, seria.

Outros profissionais apontam problemas nas propostas de editais elaboradas pelo MinC. Henrique Freitas de Lima e Roberto Ricomini Piccelli, advogados e consultores para a indústria audiovisual, chamam a atenção, em parecer elaborado na semana passada, para a necessidade de registro na Ancine para os espaços beneficiados. Ressaltam, em especial, que o objetivo primordial da LPG, no tocante ao setor de exibição, é “apoiar salas de cinema afetadas pela pandemia”, ação, insisto, não destacada nas recomendações do ministério aos gestores culturais estaduais e municipais.

Nesse caso, o barco com mercúrio, uma substancia tóxica, continua à deriva, mas ainda não afundou. Esperamos que seu trajeto seja corrigido antes do previsível desastre que contaminará o rio do audiovisual brasileiro.