Lei Paulo Gustavo causa ‘saia-justa’ ao englobar FSA

Lei Paulo Gustavo causa ‘saia-justa’ ao englobar FSA

Ana Paula Sousa
11 mar 22

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Divulgação

Paulo Gustavo, que dá nome ao PLC 73

“Quem vai vir a público criticar uma lei que leva o nome do Paulo Gustavo?”, pergunta, mais em tom de aflição do que de ironia, um representante de um player que falou com a Filme B.

Apesar de o Projeto de Lei Complementar 73 (2021), que leva o nome de Lei Paulo Gustavo, vir mobilizando o setor audiovisual, ainda restam dúvidas de como o dinheiro será distribuído. O principal temor de alguns profissionais, ainda pouco discutido publicamente, é que a lei dê autonomia para que estados e municípios utilizem recursos do FSA (Fundo Setor do Audiovisual) com critérios diferentes dos praticados hoje pela Ancine e sem a regulação da agência.

Vale reforçar que o impasse não prejudica a nova leva de editais da Ancine que marca a retomada do FSA, uma vez que tais linhas contam com verbas já destinadas.

A Lei Paulo Gustavo foi aprovada na Câmara dos Deputados em 24 de fevereiro e, por ter sido modificada, ainda terá de voltar ao Senado. Essas modificações incluíram negociações com o próprio governo, e agora inclui uma emenda da deputada bolsonarista Bia Kicis (União-DF), na qual fica garantido que a Secretaria de Cultura definirá quais segmentos culturais serão prioritários na aplicação dos recursos.  

“A Câmara nem sabe o que aprovou”, afirmou, também em off, um gestor da área.

Superávit financeiro do FSA

O projeto, resumidamente, destina R$ 3,8 bilhões do superávit financeiro do Fundo Nacional de Cultura (FNC) para estados e municípios. Esses recursos devem ser aplicados, a partir de editais e prêmios, em ações destinadas a enfrentar os impactos da Covid-19 sobre o setor cultural. 

Cabe lembrar que o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) foi instituído, em 2006, como uma categoria de programação específica do FNC. Por isso, dos R$ 3,8 bilhões, R$ 2,7 bilhões pertencem ao FSA, um mecanismo criado pelo — e para — o setor e administrado pelo Comitê Gestor.

Esse valor, de acordo com o Projeto de Lei Complementar, deve ser distribuído na modalidade de recursos não reembolsáveis. Isto é, deve ser usado “apenas em casos excepcionais”, segundo o BRDE.

Os R$ 2,7 milhões não surgiram, obviamente, do nada. Eles correspondem ao superávit financeiro do FSA. 

O superávit financeiro é composto por todos os saldos não utilizados do FSA ao longo dos anos. Como profissionais do setor sabem, nem todos os recursos dos fundos públicos chegam ao destino para o qual foram pensados. Parte deles fica pelo caminho  ou porque não foram executados ou porque foram contingenciados. Quando o recurso não é utilizado, ele volta para o Tesouro Nacional.

Meandros fiscais e legais

A problematização técnica do uso desses recursos por estados e municípios coube ao advogado Alberto Bitelli, que atende grandes players de diferentes elos da cadeia do audiovisual.

“Grande parte dos recursos que esse projeto de lei complementar está transferindo e pulverizando pelos entes da federação estava destinado à produção das obras audiovisuais em desenvolvimento por meio de fomento direto”, afirmou, em um artigo publicado no site TelaViva.

O que se pergunta é: por que o Congresso Nacional não libera esses mesmos recursos diretamente para o FSA, mantendo-os sob a responsabilidade do Comitê Gestor do FSA? Há quem diga que a razão é, sobretudo, política: a ideia seria, justamente, descentralizar a distribuição de recursos. 

Em resposta ao artigo de Bitelli, Bruno Moretti e Marcos Souza, servidores públicos e assessores parlamentares da bancada do PT no Senado, escreveram um texto no qual dizem não ser factível a alternativa de concentrar as decisões no Comitê Gestor.

Isso se daria porque o regime fiscal estabelecido em 2016 cria um teto de gastos que torna quase impossível o uso de superávit financeiro em fundos setoriais. 

“Créditos extraordinários, editados para fazer frente a despesas urgentes, relevantes e imprevisíveis, não são computados no teto de gastos”, escrevem, para justificar a distribuição dos recursos do FSA por estados e municípios.

Em outras palavras: as transferências federais aos demais entes da federação, permitidas no contexto emergencial da pandemia, não entram na regra do teto.

O reconhecimento do “estado de calamidade pública” e a previsão do “orçamento de guerra”, utilizados para a defesa da Lei Aldir Blanc, são mencionados também pelos defensores da Lei Paulo Gustavo.

Riscos futuros?

Pelo que a Filme B apurou, ainda existem, no FSA, cerca de R$ 800 milhões em restos a pagar, além de promessas de liberações a serem cumpridas isso tudo sem falar no orçamento deste ano. Residiria nesse ponto outro risco implicado na Lei Paulo Gustavo.

Uma fonte afirmou, em off, que existe a possibilidade de o Tesouro, a partir da liberação de R$ 2,7 bilhões em 2022, conter as liberações nos próximos dois anos  dado o grande volume de recursos. Sabe-se, porém, que esse impacto tende a depender mais de questões políticas do que técnicas. 

O projeto, declaradamente, tem também o objetivo de driblar o uso que o governo faz do superávit financeiro  usado para amortizar a dívida pública. Reside nesse ponto outra questão que se coloca entre os que problematizam o projeto: se o FSA se tornou possível é também porque ele, “graças” ao superávit, “contribui” para as contas públicas. 

O contingenciamento, nesse sentido, faz parte da lógica interna e não explicitada de seu funcionamento. Ao quebrá-la, quebra-se também um acordo tácito que pode colocar ainda mais pressão política e econômica sobre os fundos.