O martelo de Cannes

Gustavo Leitão, de Buenos Aires
03 dez 14

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Filme B

Quem esperava ver "a mística" do Festival de Cannes subir ao palco, no auditório do Ventana Sur, nesta terça-feira, dia 2, deve ter saído decepcionado. A master class com o diretor artístico do mais altivo dos festivais europeus mais pareceu uma conversa pós-classe. Falando um espanhol quase sem falhas, Thierry Frémaux não se esquivou de nenhuma pergunta em 90 minutos de bate-papo, mediado pelo jornalista John Hopewell, da Variety. Rápido no gatilho e sem qualquer traço de arrogância, devorou temas como o cinema digital, polêmicas da programação e a tímida presença brasileira nas últimas edições. Também reafirmou seu amor pela América Latina, principalmente a Argentina, que chegou a ter medo de privilegiar.

"Amo este país. Por coincidência, cheguei ao festival ao mesmo tempo em que surgia o novo cinema argentino. É um cinema forte, cheio de vitalidade. E Cannes retrata um momento do ano, é uma fotografia", falou, para a sala cheia da Universidade Católica Argentina, no bairro de Puerto Madero, em Buenos Aires. Sua presença ali já era prova desta ligação. O Ventana Sur é uma iniciativa do INCAA argentino com o Marché du Film, o mercado de Cannes, e todo ano reúne produtores e agentes de venda da região. Na plateia, portanto, estavam potenciais candidatos de um lugar ao sol da Croisette. Para cada eleito, Frémaux sabe como ninguém, todo ano surge uma ruidosa fila de insatisfeitos.

A última polêmica em torno de um selecionado envolveu justamente um filme argentino. Incluído em competição na edição deste ano, Relatos selvagens foi apontado por parte da imprensa como um produto comercial, indigno da importância de Cannes. Para Frémaux, a comunicação com o público do longa de Damián Szifrón foi exatamente o que motivou a escolha. "Não temos que esperar 30 anos para celebrar um cinema de humor negro popular como esse. Faço uma relação com John Woo, que para mim foi quem renovou a linguagem do cinema policial. E ele não estava em Cannes. Foi um erro", afirmou. "Os intelectuais franceses não souberam como reagir a Relatos selvagens. Para eles, todo filme bom deve ter Mathieu Amalric no elenco", brincou.

Brasileiros se queixam de desdém do festival

No bloco dos insatisfeitos recentes, estão os realizadores brasileiros. Um dos mais fortes mercados da região, o país vem tendo presença reduzida nas mostras. A última participação em competição, por exemplo, foi em 2008, com Linha de passe, de Walter Salles (o diretor retornou em 2012 com On the road, uma coprodução falada em inglês e com maior participação internacional). Questionado sobre essa omissão, Frémaux foi direto: faltam filmes inscritos com o perfil do festival. "Em todo lugar que eu vou respondo a perguntas como essa. Na China, me diziam que tínhamos muitos filmes chineses, mas não os bons. Eu respondia: 'então me mandem os que faltam!'. Acho que a resposta é a mesma para o Brasil. Quero ver esses flmes", disse, reconhecendo que nos demais festivais europeus a presença tem sido mais assídua: "Nesse sentido, quero destacar a importância de outras seleções, como Roterdã. Elas põem os novos nomes no mapa".

A programação de Cannes, que tem cerca de 60 filmes, exige um esforço intenso de curadoria. Todo ano, são cerca de 1.800 títulos avaliados. Todos devidamente vistos, garante Frémaux, por ele e dois comitês com três pessoas cada. Sozinho, o diretor assiste a cerca de 800 por ano - ou sete a oito por dia.

Por conta da exposição, a escolha dos filmes em competição é particularmente complicada. Nem todo filme de qualidade, diz ele, está preparado para enfrentar o tiroteio que envolve a Palma de Ouro. "Se escolho um determinado título para a programação Um Certo Olhar, não significa que gostei menos dele. Este ano, por exemplo, [o diretor húngaro] Kornél Mundruczó, de White God, foi o vencedor. Ele já tinha ido para a competição em outros anos e, antes que começassem a dizer 'ele outra vez?', resolvi protegê-lo colocando o filme na outra seção", explicou. "Cannes tem muita imprensa e às vezes são injustos com os filmes. Mas essa é a história da arte. Até A regra do jogo, de Renoir, teve críticas ruins".

Seleção é marcada por controvérsias

Preferências pessoais à parte, a escolha dos títulos tem a ver com o poder de fogo de um filme em determinado momento. Foi assim com o controverso Irreversível, em 2002, que Frémaux ajudou a escolher, ao lado do presidente do festival, Gilles Jacob, mesmo sem ter quase conseguido assistir por conta da violência ("vi assim", fez graça, com as mãos na frente do rosto). O mesmo não aconteceu com Bem-vindo a Nova York, de Abel Ferrara, este ano. Apesar do tema quente - o escândalo sexual de Dominique Strauss-Kahn -, o longa acabou vetado da competição. Mesmo assim, a distribuidora Wild Bunch não se fez de rogada e usou o festival como plataforma de publicidade. "Eles venderam o filme como algo clandestino, mais audacioso do que permitia a seleção oficial. Isso só aconteceu porque todo mundo sabe que Cannes é the place to be ('o lugar para se estar')", afirmou Frémaux.

Entre os títulos que causaram estranheza na época, estão Oldboy (2003), de Park Chan-wook, visto apenas como um filme de gênero, e Carlos (2010), biografia do terrorista Chacal assinada pelo diretor Olivier Assayas, originalmente uma minissérie para a televisão. "Nesse caso, a administração do festival me disse que existia uma cronologia de mídia que eu não podia quebrar lançando algo feito para a TV em um festival. Mas Cannes é um laboratório, temos a obrigação de fazer sempre diferente", defendeu. Para ele, esses dilemas de "sim" e "não" são mais leves que pode parecer ao longe. "Quando me perguntam se sofro muita pressão, digo 'bom, se pressão for um diretor ou produtor dizendo que tem o melhor filme do mundo, nada mais normal'. Gosto que aquele cara lute por sua obra".

A escolha das Palmas de Ouro, como não podia deixar de ser, provoca outros faniquitos. Desde o anúncio do presidente do júri ("é preciso buscar um equilíbrio entre atores, diretores, países, continentes", disse) até a divulgação de premiados, pululam boatos, intrigas e histórias de bastidor. Tudo parte da tal mística do festival. "Gosto muito dos rumores de Cannes. Em 2013, disseram que o júri tinha escolhido O passado até o almoço, depois repensaram e preferiram Azul é a cor mais quente. É uma história linda, mas falsa", esclareceu, acrescentando que as decisões dos jurados são sempre individuais: "Podemos cometer erros, mas são erros pessoais, não são frutos de conspirações".

Integração de plataformas: o próximo passo

Depois do primeiro flerte com a projeção digital em 2002 - quando tanto o hollywoodiano Star Wars quanto o ousado filme em plano-sequência A arca russa foram exibidos com a tecnologia -, o festival consolidou seu lugar nessa transição este ano, que não contou com nenhuma sessão em película. As mudanças futuras devem vir da cada vez mais discutida relação de janelas, entre cinema, televisão e video on demand. O primeiro passo foi dado com a exibição de Carlos. "No futuro, será difícil respeitar essa cronologia. Há uma contaminação crescente, com obras que não encontram lugar no circuito e acabam indo parar na internet. Não vejo problema de abrir esse caminho, porque o cinema vai continua sendo uma sala, uma tela e uma maneira de assistir a algo juntos", disse.

O próximo passo? "Bom, vamos proibir selfies no tapete vermelho. Basta de egocentrismo!", riu.